sexta-feira, 3 de março de 2017

Desenhos de uma vida


Valdemar Dória, um artista talentosamente compulsivo e nato que brota uma cascata de talento expressivo. E o desenho é o seu forte mecanismo de comunicação.

Como a maior parte das crianças, ele desenhava muito. Desenhava mais do que os seus colegas meninos da sua infância escolar e como artista plástico expressa-se através do desenho mais do que muito dos artista do seu meio social. É extraordinário a sua manifestação através do traço sobre tudo ou todo o suporte em que se apropria, incluindo os eletrodomésticos do seu habitat. Tudo é suporte e todos os suportes servem para desenhar.
É através desta visão é que olhamos ontologicamente esta série de desenhos que o artista desenvolveu ao longo dos últimos quinze anos de seu exercício como artista plástico.
O Valdemar nasceu em São Tomé e Príncipe e emigrou-se para Portugal com a sua mãe na idade pré escolar. Em Lisboa estudou e nesta fase da sua vida o desenho afirmou na sua vida como o revelador do que haveria de ser o seu futuro. Desenhava nos cadernos de todas as disciplinas escolares. Actualmente os diários gráficos tornaram-se autênticas obras de arte com narrativas autobiográficas e de memórias visuais por explorar. Tal como a Maria João Mota, antropóloga e professora universitária que acompanhava os seus trabalhos cita: “ O Valdemar guarda os seus cadernos de desenho que tem feito ao longo do seu percurso criativo, e, alguns pormenores desses mesmos desenhos são reproduzidos e pintados sobre telas ou serapilheira. As composições pictóricas apresentam variados elementos sobrepostos e ou bustos isolados…
Ele identifica-se e representa a cultura de São Tomé e Príncipe através da ausência temporal e distanciamento geográfico que sente relativamente a ela. A ausência é pensada em relação ao contexto urbano lisboeta da sua vida quotidiana e nas práticas que, como a criativa, lhe fazem relembrar o país natal.”
“I. Sequeira: – Só uma nota a propósito do trabalho de Valdemar. Nas suas composições, entre as várias linhas há sempre a introdução de vários ícones que se repetem como: os olhos, as mãos, os dedos, e depois sempre uma pequena recordação que ficou para trás. Porque Valdemar veio pequeno para Portugal e ficou com pequenas lembranças e de forma inconsciente ele vai-se libertando com essas imagens do seu passado. Há sempre qualquer coisa relacionada com a terra natal nos seus trabalhos ou então, a experiência urbana da vida cotidiana, da paisagem que caracteriza particularmente Lisboa.
Embora não pareça à primeira vista Lisboa, mas é a referência do espaço suburbano lisboeta que motivou Valdemar a fazer esse tipo de representação…” (Maria João Mota In (Entre Artes , Em Lisboa) pág. 208.
Nesta seleção de desenhos há um denominador comum: rostos. Os rostos, representados com insistência, na tentativa de identificar ou exprimir o sentimento compulsivo do seu comportamento na busca sistemática da sua identidade não resolvida por um urbanismo vivido com diversos factores de afirmação social. Que fatores são esses?
  1. A condição incondicional de ser negro numa metrópole europeia.
  2. A injustiça social e a falta de oportunidade de lutar em condições de igualdade de direitos.
  3. O passado colonial que assombra o presente.
  4. A integração plena… entre outros. Os rostos expressivos representados nos seus desenhos questionam e manifestam o quotidiano duma vida da urbanidade europeia em simbiose com as memória de um passado do seu território de origem.
Actualmente, a construção de um novo espaço assimilado, baseado na geografia da realidade euro africana, numa visão muito pessoal do artista é o caminho a experimentar um discurso plástico para comunicar valores desta sociedade contemporânea numa perspectiva mais universal sem se esquecer da sua identidade cultural de origem.

Ismael Sequeira
Odivelas, 3 de Março de 2017

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