domingo, 26 de março de 2017

Um projecto de sonho


Há cinco anos atrás, um grupo de amigos e artistas santomenses residentes em Portugal criaram uma estrutura humana e virtual capaz de orientar e apoiar criadores em projectos, acções culturais e de artes plásticas num futuro a médio prazo.  

Estes reúnem-se em consenso e interesse em formalizar o grupo em associação como a melhor estrutura socio-cultural capaz de dar respostas aos objectivos pensados, assim nasce a Plataforma Cafuka no dia três de Março de dois mil e doze com a grande missão de projectarem as mais-valias culturais, artísticas e sociais do mundo lusófono.

Durante os anos 90, a emigração dos jovens artistas santomenses para Portugal; uns para estudarem, outros para participarem maioritariamente na exposição universal de Lisboa em 1998 e alguns para melhorarem as suas condições de vida, permitiu a criação de ambiente propício e motivador para os mesmos continuarem a dedicar-se às artes plásticas. Mas só uma minoria conseguiu integrar-se no meio artístico português continuando sistematicamente a produzirem arte.

A ideia de formarem uma associação artística continuava a ser muito bonita, mas a falta de liderança e indisponibilidade para assumirem esta responsabilidade resultou em fracasso em 2005 e em 2008. A participação em projectos colectivos até 2011 proporcionou um ambiente fértil para a união destes artistas, cuja cumplicidade amadureceu a ideia para o nascimento desta sonhada associação cultural: a Plataforma Cafuka.

Os fundadores e mentores desta plataforma de artistas santomenses, formados em diferentes áreas profissionais e artísticas partilhando ideias comuns facilitam a criação de alguns projectos estruturantes como “Integração URB”, “Frigoteca Kwá Non”, “Roça Criativa” e “Sítio Cafuka”, para elevar as artes plásticas santomenses para um palco de maior visibilidade em Portugal e no arquipélago.

A constituição de parcerias com a Zebra – ass Cultural, a Quadra Solta – Espaço Q, a Embaixada de São Tomé e Príncipe em Portugal, a ACOSP, a Mén Non entre outras organizações comunitárias e artísticas tem ajudado a concretização destes projectos e a realização doutros como o “África Mostra-se” ou o intercâmbio artístico com os artistas da cidade do Porto.

Os cinco anos, finalmente serviram para dar corpo ao grupo Cafuka, sonho antigo de unir artistas, homens das artes, de ideias convictas, criativos e capazes de gerar um movimento artístico-cultural e projectar para além do horizonte os valores identitários santomenses e lusófonos numa perspectiva  mais universal.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Desenhos de uma vida


Valdemar Dória, um artista talentosamente compulsivo e nato que brota uma cascata de talento expressivo. E o desenho é o seu forte mecanismo de comunicação.

Como a maior parte das crianças, ele desenhava muito. Desenhava mais do que os seus colegas meninos da sua infância escolar e como artista plástico expressa-se através do desenho mais do que muito dos artista do seu meio social. É extraordinário a sua manifestação através do traço sobre tudo ou todo o suporte em que se apropria, incluindo os eletrodomésticos do seu habitat. Tudo é suporte e todos os suportes servem para desenhar.
É através desta visão é que olhamos ontologicamente esta série de desenhos que o artista desenvolveu ao longo dos últimos quinze anos de seu exercício como artista plástico.
O Valdemar nasceu em São Tomé e Príncipe e emigrou-se para Portugal com a sua mãe na idade pré escolar. Em Lisboa estudou e nesta fase da sua vida o desenho afirmou na sua vida como o revelador do que haveria de ser o seu futuro. Desenhava nos cadernos de todas as disciplinas escolares. Actualmente os diários gráficos tornaram-se autênticas obras de arte com narrativas autobiográficas e de memórias visuais por explorar. Tal como a Maria João Mota, antropóloga e professora universitária que acompanhava os seus trabalhos cita: “ O Valdemar guarda os seus cadernos de desenho que tem feito ao longo do seu percurso criativo, e, alguns pormenores desses mesmos desenhos são reproduzidos e pintados sobre telas ou serapilheira. As composições pictóricas apresentam variados elementos sobrepostos e ou bustos isolados…
Ele identifica-se e representa a cultura de São Tomé e Príncipe através da ausência temporal e distanciamento geográfico que sente relativamente a ela. A ausência é pensada em relação ao contexto urbano lisboeta da sua vida quotidiana e nas práticas que, como a criativa, lhe fazem relembrar o país natal.”
“I. Sequeira: – Só uma nota a propósito do trabalho de Valdemar. Nas suas composições, entre as várias linhas há sempre a introdução de vários ícones que se repetem como: os olhos, as mãos, os dedos, e depois sempre uma pequena recordação que ficou para trás. Porque Valdemar veio pequeno para Portugal e ficou com pequenas lembranças e de forma inconsciente ele vai-se libertando com essas imagens do seu passado. Há sempre qualquer coisa relacionada com a terra natal nos seus trabalhos ou então, a experiência urbana da vida cotidiana, da paisagem que caracteriza particularmente Lisboa.
Embora não pareça à primeira vista Lisboa, mas é a referência do espaço suburbano lisboeta que motivou Valdemar a fazer esse tipo de representação…” (Maria João Mota In (Entre Artes , Em Lisboa) pág. 208.
Nesta seleção de desenhos há um denominador comum: rostos. Os rostos, representados com insistência, na tentativa de identificar ou exprimir o sentimento compulsivo do seu comportamento na busca sistemática da sua identidade não resolvida por um urbanismo vivido com diversos factores de afirmação social. Que fatores são esses?
  1. A condição incondicional de ser negro numa metrópole europeia.
  2. A injustiça social e a falta de oportunidade de lutar em condições de igualdade de direitos.
  3. O passado colonial que assombra o presente.
  4. A integração plena… entre outros. Os rostos expressivos representados nos seus desenhos questionam e manifestam o quotidiano duma vida da urbanidade europeia em simbiose com as memória de um passado do seu território de origem.
Actualmente, a construção de um novo espaço assimilado, baseado na geografia da realidade euro africana, numa visão muito pessoal do artista é o caminho a experimentar um discurso plástico para comunicar valores desta sociedade contemporânea numa perspectiva mais universal sem se esquecer da sua identidade cultural de origem.

Ismael Sequeira
Odivelas, 3 de Março de 2017