quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A revolução cultural faz-se sem dinheiro


Entrevista exclusiva do artista plástico sãotomense, Ismael Sequeira, líder da Plataforma CAFUKA, associação de artistas plásticos naturais de São Tomé e Príncipe que tem como objectivo principal gerar um movimento artístico capaz de influenciar transversalmente todas as disciplinas criativas santomenses e do universo lusófono em Portugal. No dia 12 deste mês, a Plataforma CAFUKA vai estar presente no África Mostra-se e inaugurará uma exposição colectiva na galeria Quadras Soltas - Espaço Q no Porto (Portugal). Actualmente, Ismael está a participar num projecto expositivo em Macau com 3 telas de pequena e média escala.
Principais Exposições Individuais: Centro Cultural Português de São Tomé em 1989 e 1991. Sala Francisco Tenreiro em São Tomé em 1990. “Os Tongas” na Galeria Artela em Lisboa em 2007. “O Olhar do Falcão” na Galeria do Montepio Geral em Lisboa em 2011.
Principais Exposições Colectivas: III e IV Bienal da CICIBA – Centro Internacional de Civilização Bantú, respectivamente, em 1989 – Libreville e 1991 – Bata. “Neo África Lusófona” em Barcelona em 1995. IV Bienal de Arte e Cultura de São Tomé e Príncipe em São Tomé em 2013. Em 2014 em Lisboa, “A Água e as Diásporas” – exposição integrada no festival “África Mostra-se”, Museu de História Natural e da Ciência. “Integração URB.014” – exposição de arte pública efémera, Praça Martim Moniz.
Aprendeu a ler aos 4 anos
Ismael Sequeira nasceu em Conceição – São Tomé, aos 20 de Julho de 1969. Estudou Artes Plásticas e Escultura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Mas descobriu a sua veia artística desde a infância. “Tive esta plena consciência de capacidade criativa por ter sido muito precoce na leitura e de modelar e construir objectos a partir da reciclagem de materiais. Aprendi a ler com quatro anos de idade com a minha avó materna Hilária d’Almeida (Lilí)”, contou ao STPDigital com orgulho.
O desenho e a pintura preenchiam o seu tempo enquanto os outros meninos jogavam à bola, brincavam com rodas (“correr roda”), tomavam banho no rio e faziam “cowboyadas” (o jogo das escondidas). “A minha infância foi marcada pela arte, até porque o meu avô Veoide Pires dos Santos era artesão tartarugueiro e ia seguindo-lhe as pisadas”, acrescentou o artista.
Rabiscos, Esquemas, Esboços
O seu processo criativo é normalmente demorado. Começa quase sempre por ter uma ideia intencional ou espontânea. A partir desta, inicia um processo de reflexão e pesquisa sobre o assunto a desenvolver. Deste exercício, faz rabiscos, esquemas, esboços ou esbocetos, no caso dos objectos serem tridimensionais e maquetes para intervenções espaciais. Só depois destes passos e após estar satisfeito com os resultados experimentais é que finalmente executa as obras finais. O largo tempo de pesquisa e reflexões são a razão de fazer sistematicamente exposições individuais e revela também o perfeccionista que nele existe.
Apesar de ser licenciado em escultura, é na área da pintura que desenvolve mais o seu trabalho artístico. Tem pintado regularmente em acrílico como técnica preferencial. Mesmo as aguadas, faz com tintas acrílicas explorando as suas transparências como propriedade comum deste material. Também já trabalhou com outras técnicas: “Actualmente, faço uma série de trabalhos diferentes o que obriga-me a utilizar técnicas diferentes para cada objecto criativo.” Para os desenhos utiliza desde lápis de carvão, esferográfica de tinta de gel, pastel de óleo ou mesmo os acrílicos. “Há certos tipos de desenhos que gosto de os fazer em programas informáticos, sobretudo quando é para ilustrar ideias de espaços, objectos de grande escala numa praça ou um mural”, explicou Ismael. Recorre igualmente à técnicas-mistas para realizar determinados tipos de trabalhos, principalmente os tridimensionais. Para estes, utiliza fibras naturais, corda de sisal, serapilheira, latão, alumínio, caricas, latas, ferro, madeira, plásticos, caniço, tecidos, etc.
Em Janeiro de 2016, desafiado pela escritora e estilista sãotomense, Goretti Pina, realizaram em conjunto um projecto multidisciplinar intitulado “Arte Solidária”, na qual Ismael desenhou objectos escultóricos, acessórios de moda, body painting, telas em acrílico e desenho de iluminação para o espectáculo. “O resultado criativo, confesso que foi fabuloso!”, disse ao STPDigital. Tratou-se de um projecto de solidariedade para com os doentes santomenses de junta médica em Portugal, que passam por muitas dificuldades.
Cores, cores e mais cores
Ismael utiliza cores muito vivas nas suas obras. Perguntamos-lhe o motivo: “É verdade que utilizo muito nas minhas pinturas cores vivas, mas gosto sobretudo de fazer altos contrastes. Mesmo quando utilizo cores frias. Através das cores manifesto o meu estado de espírito e a psicologia das cores aponta caminhos para bem interpretá-las.” Observar a natureza ou o meio social no universo urbano em que vive, influenciam muito a sua escolha de cores da ideia que pretende comunicar. Nas suas obras, muitas vezes, as cores sobrepõem-se às formas. A utilização de cores vivas servem para comunicar com maior realce a intencionalidade das suas ideias.
Pintou com Malangatana
Arrancamos-lhe gargalhadas ao questionarmos as suas influências artísticas. “Muitos artistas”, começou por dizer. E revirando as suas memórias: “Ainda na minha fase precoce, com a aprendizagem da leitura conheci as histórias do Leonardo da Vinci, do Rafael e do Miguel Ângelo mesmo sem perceber nada do Renascimento. Gostava de admirar as belas ilustrações das enciclopédias e livros antigos de História Universal que tínhamos em casa e ler passagens de textos de estética sem perceber nada de filosofia… O Pablo Picasso, Miró e Dali. Van Gogh e Duchan.” Conheceu Sun Canarin, Cesaltino da Fonseca e Protásio Pina. Em São Tomé e Príncipe, no ano de 1990, pintou com Malangatana dois murais no Prédio do Banco, em conjunto com Litos Silva, na Praça da Independência. Disse-nos ainda que ao estudar Belas Artes teve conhecimento de muitos outros artistas que o ajudaram a compreender melhor os seus olhares para o mundo e a forma como poderiam influenciar a sociedade com as suas acções criativas e os seus trabalhos.
Regresso às Ilhas do Meio do Mundo
Vive fora de São Tomé e Príncipe há cerca de vinte e cinco anos. Ismael obteve uma bolsa de estudos para estudar Pintura e Escultura em Portugal. Depois de oito anos sem regressar à terra natal, em 1999, regressou, pela primeira vez, para iniciar um estudo sobre a museologia no país e visitar o seu avô materno que, infelizmente, faleceu um mês antes do seu regresso. Passou, então, a visitar anualmente o arquipélago, e outras vezes, de dois em dois anos. “Já tive muita vontade de regressar e ao longo do tempo após a minha formação fui desistindo porque organizei-me profissionalmente em Lisboa, a cidade onde criei a minha família.” Contudo, o seu grande sonho é voltar a viver em São Tomé. “Por isso, não perdi contacto com ela e com as pessoas e sistematicamente vou criando iniciativas e pretextos de colaboração profissional para lá ir.”
Quando pensa em São Tomé e Príncipe o que lhe vem a cabeça?
(gargalhas) “Quando penso em São Tomé e Príncipe o que penso, primeiramente, é na sua exuberante beleza natural com enormes potencialidades a serem exploradas e de tornar-se um território de esperança de boa qualidade de vida para a sua população residente. Penso a seguir na miséria espiritual da classe dominante, num país desorganizado e na pobreza do povo insular que sonha com uma nação digna.”
Ismael vive a paternidade com muita preocupação. “Vivemos num mundo de muitas incertezas. Insisto que os nossos filhos devam estudar e se qualificar o melhor possível para que possam ter várias opções profissionais no mercado de trabalho. Gostaria que o mundo para os nossos filhos fosse de maior estabilidade, maior segurança e de melhor dignidade humana. Um mundo em que se pudesse conviver sem grandes contrastes sociais e com maior solidariedade entre as pessoas.”
O artista disse ao STPDigital que não pode ficar indiferente a falta de sensibilidade do Estado Sãotomense em apoiar a nossa cultura como um pilar estrutural para o desenvolvimento humano, económico e social do país. “Há pessoas interessantes preocupadas com as questões culturais, mas sem influência política não podem fazer nada numa terra onde tudo só funciona na auto-estrada política”. Ismael criticou, igualmente, todos os outros agentes socioculturais que nada fazem para alterarem este ciclo e falou na necessidade de uma revolução cultural. “A Revolução Cultural faz-se sem dinheiro. Faz-se com a consciência da necessidade de mudar tudo o que está mal apelando aos bons valores sociais vitais para o bem colectivo”. Ismael acredita que através da arte e da cultura, os agentes desta especialidade podem exercer influências positivas capazes de transformar o país. “As artes plásticas deram este sinal e que vem crescendo há quase trinta anos. E podemos ir mais longe se tivermos visão e maior ambição. Temos mais artistas no activo desde a Independência Nacional, temos uma Bienal de Arte e Cultura, que ajuda a projectar a qualidade das nossas artes, temos um pequeno movimento artístico-cultural fora do país que dimensiona o melhor que São Tomé e Príncipe tem neste domínio”, acrescentou o artista.
Arte para todos vs “Arte Elitista”
Como artista que é, Ismael admitiu que, infelizmente, a arte é elitista. “Mas é verdade que no nosso quotidiano somos confrontados com diversos objectos de arte e vivemos paralelamente com soluções criativas interessantes. A arte pode ser para todos. A arte pública é uma solução para oferecer ao público a fruição da criação artística através da escultura, instalação, arte urbana, performance, espectáculos de música e dança na rua, fotografia vitrinismo, videomaping, arquitectura, etc.” O artista frisou o papel das galerias e museus, que podem oferecer entrada gratuita uma vez por semana para que o público se interesse mais pela arte. “Para que a arte chegue mais facilmente a maioria das pessoas há que se investir mais nela. Há que se investir muito mais na cultura não só como entretenimento mas como veículo de comunicação e formação do sujeito humano.”
Dá-nos como exemplo, o Projecto URB da Plataforma CAFUKA, que desenvolve projectos efémeros de arte pública com o objectivo de levar a arte ao público comum com mais facilidade. Em 2011, o projecto foi experimentado em São Tomé. Ismael cita também a CACAU como outro exemplo de investimento cultural que merece toda a atenção nacional por oferecer uma produção de bens artísticos e culturais grátis à população em geral, incluindo a formação em algumas áreas artísticas. “Tem aparecido igualmente alguns apoios isolados de individualidades e mecenas do país que o devem continuar a fazer”. O artista sãotomense disse ainda que o apoio do Centro Cultural Português, da Aliance Française de São Tomé e Príncipe e, mais recentemente, do Cento Cultural Brasileiro tem sido um contributo importante na melhoria da produção e difusão dos valores culturais nacionais para que a arte chegue com maior regularidade às pessoas. “E penso que elas devem estar atentas a todas estas ofertas”.
A Cultura Nacional
Para Ismael, o estado investiu mais e melhor na arte e na cultura nos anos 80. “A arte em si continua a cumprir o seu papel de condicionar no observador a reflexão das principais temáticas propostas de que a sociedade vive. O estímulo a produção artística e cultural é feito também dos contextos em que a própria sociedade vive. O ambiente fértil para a crítica, para reflexão e produção artística é o de crise, sistemas fechados e grandes acontecimentos. Estes estimulam a criatividade. Abre espaço para a encenação teatral, em que a literatura, a pintura, a escultura e a música também procuram protagonismo para se afirmar como veículo de comunicação”. O artista disse que a cultura sãotomense fora do país tem alcançado espaço, principalmente em Portugal, enquanto no próprio país tem se mantido estável. “Em Lisboa, a vivência de algumas tradições religiosas e festas regionais cresceram, a afirmação da identidade através dos trajes femininos e hábitos alimentares melhoraram, as artes plásticas e a literatura tem ganho maior protagonismo, surgiram três bandas musicais de matiz musical sãotomense. Isto tem um significado e merece a nossa maior atenção.”
Mas, segundo Ismael, apesar de estável, o estado da cultura não está bem. “Necessita de urgente investimento. Investimento nos quadros humanos especializados, em infraestruturas, na conservação e preservação do património cultural tangível e intangível, na criação de organismos especializados na gestão de bens culturais, criação de equipa e projectos de investigação de bens culturais, paisagísticos e geológicos, etc.” Ismael destacou também a necessidade urgente de cuidados que as roças necessitam para se reerguerem como organização económica e cultural.
Para o artista, a cultura nacional necessita de uma dinâmica que trace novas orientações para que os valores da nossa memória colectiva resistam no tempo e que as futuras gerações deles se beneficiem.


Entrevistado por
Katya Aragão

Fonte: STPDigital , Publicado em quarta, 09 novembro 2016 02:57